JUSTIÇA TRIBUTÁRIA
Existem diversas formas de se estudar o Direito. Uma delas é através de cada norma isoladamente, daí surgem textos sobre a Lei A ou o Decreto B. Outra é através de uma visão panorâmica sobre uma área de conhecimento, como feito pelos cursos e manuais. Existem também as teses, fruto de pesquisas jurídicas, que já
comentei anteriormente. Pode-se ainda tentar demonstrar as ideias jurídicas que subjazem a partir da análise de um conjunto de normas, como esboçarei neste texto, debruçando-me sobre duas novidades deste início de 2018.
Primeiro surge a penhora sem ordem judicial, como um “jabuti” na Lei 13.606, de 9/1/2018, e, logo após, é editada a Portaria PGFN 27, de 12/1/2018, que incentiva o denuncismo fiscal. Vamos a elas.
Em 31/7/2017, foi editada a MP 793, instituindo o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), uma espécie de Refis do Funrural, e encaminhada ao Congresso, conforme determina a Constituição. Em 29/9/2017, foi editada a MP 803, que modificou alguns preceitos daquele programa, visando aperfeiçoá-lo. O prazo de vigência da MP 793 foi formalmente encerrado em 28/11/2017, porém o texto foi transformado em projeto de lei na Câmara dos Deputados e, após aprovado nas duas Casas legislativas, transformado na Lei 13.606/18, que trouxe no artigo 25 uma inovação que não constava das referidas medidas provisórias — foi modificada a Lei 10.522/02, que trata do Cadin, cadastro informativo dos créditos não quitados com a União, mais conhecido como cadastro dos inadimplentes.
Essa alteração inovadora da Lei do Refis do Funrural introduziu quatro artigos na lei do Cadin: 20-B, 20-C, 20-D e 20-E.
A bom tempo o artigo 20-D foi vetado pelo presidente da República, pois permitiria à PGFN notificar as pessoas (físicas e jurídicas) que tivessem débitos inscritos em dívida ativa, bem como a terceiros, para prestar depoimentos ou esclarecimentos, além de permitir requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades de quaisquer órgãos, de todos os níveis federativos e instaurar procedimento administrativo para apuração de responsabilidade por débito inscrito em dívida ativa da União, ajuizado ou não.
Porém, foram sancionados os demais artigos, sendo o mais problemático o artigo 20-B, que determina a notificação do devedor para que, em até cinco dias, efetue o pagamento do valor inscrito em dívida ativa, e, caso não pago o débito nesse prazo, a Fazenda Pública poderá “averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis” (artigo 20-B, parágrafo 3º, inserido na Lei 10.522/02 pelo artigo 25 da Lei 13.606/18).
O problema está no fato de que o arresto e a penhora são medidas que constrangem a propriedade do devedor e não podem ser feitos sem a intervenção do Poder Judiciário. Afinal, a propriedade é constitucionalmente garantida nos termos do artigo 5º, XXII, devendo ser obedecida sua função social (artigo 5º, XXIII). Mesmo o procedimento de desapropriação — retirada coativa da propriedade — só pode ocorrer mediante “prévia e justa indenização em dinheiro” (artigo 5º, XXIV). Poder-se-ia até mesmo fazer um paralelo com o sistema de Bancenjud, mas, como a própria sigla indica, a constrição das contas bancárias só pode ocorrer por meio de ordem judicial.
Caso seja considerada essa inovação como uma norma de Direito Processual Civil, inserida na competência normativa da União (artigo 22, I, CF), constatar-se-á uma contradição, pois todas as medidas de constrição da propriedade veiculadas pelo CPC tem o Poder Judiciário como ator principal. Por outro lado, se for considerada uma norma de procedimento em matéria processual, haverá competência concorrente (artigo 24, XI, CF) e até o mais remoto município brasileiro poderá instituir preceito semelhante, ampliando fortemente a insegurança jurídica no âmbito tributário.
Essa norma veicula um novo sistema de cobrança de créditos fiscais por parte da Fazenda Nacional, permitindo a constrição administrativa da propriedade sem ordem judicial. Trata-se de uma inovação perigosa, pois amplia fortemente os poderes das autoridades fiscais e lhes permite autoexecutar seus créditos, baseados em suas próprias razões.
Observe-se que as instâncias julgadoras administrativas, dentre elas o Carf, não podem analisar argumentos que envolvam a constitucionalidade das leis, o que só piora a situação, pois é enorme a quantidade de créditos fiscais inscritos em dívida ativa que foram declarados inconstitucionais nos últimos 30 anos (da Constituição para cá). O patrimônio dos contribuintes será onerado, mesmo nos casos em que a jurisprudência dos tribunais superiores está pacificada em seu favor, mas sem declaração de inconstitucionalidade erga omnes ou súmulas. Tudo isso perverte a ordem jurídica que tem a Constituição em seu ápice.
O STF já deliberou em caso semelhante, na ADI 1.074/DF, declarando inconstitucional a exigência de depósito prévio no percentual de 30% do valor da dívida como condição para interposição de recurso judicial. O acórdão, da lavra do ministro Eros Grau, foi direto ao ponto, ao afirmar na ementa que tal restrição “consubstancia barreira ao acesso ao Poder Judiciário”. A situação é semelhante, pois cria uma espécie de execução fiscal administrativa, que se iniciará com a constrição dos bens, para posterior análise judicial — se isso ocorrer. Tal norma cria forte restrição à garantia de acesso ao Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV, CF).
Não há dúvida de que é necessário reformar a vetusta Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80), mas não será a golpe de machado que isso deverá ser feito, mas por meio de um amplo debate com a sociedade, que também contemple a criação de um sistema de solução extrajudicial de litígios fiscais e a responsabilização pessoal dos agentes que cometerem excessos, o que não existe atualmente.
É certo que as pessoas devem pagar seus tributos na forma da legislação, porém onerar o patrimônio privado, sem prévia análise judicial, só tornará o sistema ainda mais complexo e injusto.
A situação se complica um pouco mais quando se vê que, logo após a edição da norma acima comentada, foi editada a Portaria PGFN 27/18, criando um Canal de Denúncias Patrimoniais (CDP), estimulando que sejam feitas denúncias identificadas ou anônimas, por pessoas físicas ou jurídicas, para recebimento de informações úteis para a recuperação de créditos inscritos em dívida ativa da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Isso é um incentivo à denúncia, ao dedodurismo fiscal, e que pode comportar diversas vilanias por parte de quem dedura, seja de forma fundamentada, visando à colaboração fiscal, seja pelos motivos mais fúteis, como vingança em diversas hipóteses (relações trabalhistas conturbadas, separações judiciais, negociações comerciais frustradas etc.). Quem denunciar estará coberto pelo manto do sigilo e da impunidade e poderá acompanhar o desdobramento de sua vendetta pelo próprio site da PGFN. Para que isso seja justo, é necessário criar algum mecanismo pelo qual o denunciante deverá ser apenado, se sua denúncia for vã. O risco é tudo isso criar um denuncismosem fim, entulhando ainda mais os canais normais de fiscalização e envenenando as relações Fisco-contribuinte.
Retornando ao começo, observemos agora as duas normas em conjunto. Uma dá direito ao Fisco Federal de onerar bens sem prévia análise judicial, outra dá vazão ao denuncismo fiscal. Quem vai coibir os excessos e apenar os responsáveis pelos eventuais abusos cometidos, que todos sabemos que pontualmente ocorrem? Independentemente das infringências constitucionais mencionadas, deve-se também pensar na tendência normativa que está sendo adotada em termos de política fiscal. Verifica-se que essas normas apontam para um clima fiscal ainda mais pesado, obstaculizando a atividade econômica em nosso país e aumentando a insalubre convivência de uns contra os outros. Em vez de buscar convergências, tais normas ampliam os canais que levam a divergências e à possibilidade de vinganças privadas.
Não parece ser este o caminho para um Brasil mais justo. É necessária e adequada uma rápida e enérgica ação do STF a respeito.
Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.
Sindojus-DF: Com informações da Revista Consultor Jurídico