terça-feira, 14 de abril de 2020

Oficial de Justiça: Um dia tenso - Plantão Extraordinário Covid-19 (30/03/2020)

Sou Oficial de Justiça em Salvador e acabo de chegar do Plantão Extraordinário COVID – 19, escala especial elaborada pela Central de Mandados de Salvador, com a participação de todos os oficiais da Capital Baiana, com exceção daqueles que, pela idade ou por problemas de saude, se encontram no grupo de risco, para cumprimento dos mandados urgentes expedidos durante o período da quarentena da Pandemia COVID-19, que na sua grande maioria se referem a medidas protetivas contra violência doméstica.

Na sexta-feira (27/03/20) a tarde eu recebi a notícia do novo Plantão Extraordinário e que eu havia sido escalada para a segunda-feira seguinte, ou seja, o primeiro dia da escala. Como costumo ver as coisas pelos dois lados, pensei: já que era justo que todos os oficiais apoiassem, neste momento, o grupo especial no cumprimento destes mandados, e eu não fazia parte do grupo de risco e, por consequência teria de cumprir o plantão, agradeci a Deus por meu plantão ter caído logo no primeiro dia.

Das pessoas envolvidas nestas demandas, não sabemos nada, exceto que estão envolvidas em situação de violência doméstica, ou "batendo ou apanhando". E, estas pessoas merecem ter seus direitos urgentes amparados pela justiça e, somos nós, oficiais de justiça, que materializamos as decisões judiciais e, consecutiva garantia do direito, pois somos o Poder Judiciário na rua.



A VÉSPERA 

E lá vamos nós, contra todo o medo e risco que a atividade impõe naturalmente e, neste momento de pandemia em que estamos todos acuados em casa, piora ainda mais a apreensão.

Além da tensão de sair em meio a pandemia rumo ao desconhecido, a grande maioria dos oficiais, como eu, passará a cumprir, neste plantão, um tipo de mandado muito peculiar e inusitado, que em tempos normais, é cumprido por um grupo especial. A CCM de Salvador conta com o Núcleo Especial de Medidas Protetivas, um grupo de 8 oficiais de justiça que se revesam em regime de plantão para cumprimento deste tipo de demanda.

Os dias que se seguiram, sábado e domingo, me trouxeram certa angústia, pois tenho sido muito cuidadosa e responsável com todos os protocolos que foram ensinados para a prevenção do contágio e, em todas as vezes que sai de casa (por necessidade) cumpri cuidadosamente as recomendações das autoridades e cobrei isso da minha família. Eu, meu marido e meu filho de 4 anos, ficamos inclusive sem contato físico nenhum com os idosos da família que, mesmo conscientes, tem sofrido muito pela distância.

Uma dúvida passou a povoar minha mente: Apesar de já estar acostumada a ir na casa de estranhos levar uma notícia, que na grande maioria das vezes eestes detestarão receber, desta vez desta vez se trata de uma matéria diferente das que tenho familiaridade. Como proceder com o novo sem cometer erros?

Se fosse só isso, tudo bem, afinal eu fiz este concurso sabendo quais eram as atribuições. Eu escolhi este ofício. O grande X que me angustiava era saber que, em meio a tudo isso, em toda parte, poderia estar um inimigo invisível e muito perigoso e, pior, saber que muitas pessoas, pra não dizer a maioria, não estão levando a sério como eu, a gravidade de tudo que estamos enfrentando e, muito menos, adotando os cuidados necessários.

O DIA D

A segunda-feira chegou e eu que, ansiosa, só consegui dormir depois da 1:00 da manha, já estava acordada antes das 5h, com muitas espinhas alérgicas, que não existiam antes de sexta, com uma agitação diferente, um suor que não dava trégua e até a menstruação que, devido a um tratamento que venho fazendo, não vinha a mais de 5 meses, resolveu se fazer presente.

Pensei que a melhor maneira de me sentir menos insegura seria tentar pensar no maior número de detalhes possíveis que pudessem me ajudar na prevenção, tanto do risco normal do trabalho, quanto da novidade epidemiológica à espreita em cada esquina ou residencia.

Preparei tudo: roupa sem detalhes, nada de aliança, anéis, relógios ou equivalentes, cabelo preso em coque, unhas curtíssimas, óculos de grau para proteger os olhos e nada de bolsa ou estojo ou a pasta de trabalho. Em vez disso, somente uma pochete (emprestada pois não gosto de pochete) e, nesta, somente o necessário, entre estes, álcool gel e álcool líquido a 70%.

Chegando na CCM, encontrei os colegas plantonistas e o pessoal da administração em situação similar a minha, muita tensão e medo no ar. Acredito que por ser o primeiro dia de um novo modelo de trabalho e ainda por estarem todos muito preocupados com um funcionamento seguro nesta nova dinâmica. A minha primeira providência foi solicitar uma máscara para já ir me acostumando a ela. Luvas eu não gosto, por achar que dá uma falsa sensação de segurança. Prefiro não usar, pois me obrigo a estar sempre atenta aonde minhas mãos vão e a usar álcool quando inevitavelmente toco em algo suspeito.

Na Central tive de usar (tocar em) computador, caneta etc para registrar o recebimento dos mandados, fazer pesquisas de endereços, ainda mais que, neste plantão, os oficiais efetuam diligencia em áreas diversas das que já estão acostumados pelo zoneamento habitual. A todo momento aplicava álcool gel nas mãos caneta, etc. 

Lembrando das coisas que ouvi em noticiários sobre o smartphone, apesar de um equipamento muito útil, ser este um importante meio de contaminação a depender de nosso comportamento, pois ficamos tentados a usar ele mesmo sem necessidade e se não lembrarmos de higienizar as mãos antes de pegá-lo, podemos contaminá-lo e aumentar o risco de auto contaminação ao usá-lo próximo do rosto, passei entao a redobrar os cuidados com o mesmo.

EM RUMO AO DESCONHECIDO

Antes de sair da Central fui ao banheiro, lavei minhas mãos e braços até os cotovelos, pois os tenho usado bastante para abrir portas, acionar interruptores etc). Peguei uma quantidade de papel toalha e fui para o estacionamento, encontrar o motorista e veículo disponibilizado pelo TJBA para o plantão. Mais uma situação inusitada para mim, pois trabalho só, utilizando transporte público ou carro próprio. Ao encontrar o motorista, notei que este também usava máscara conforme recomendado. Entrei no carro e logo me certifiquei de que teríamos álcool gel para uso durante as diligencias como prometido. Peguei o álcool, apliquei no papel toalha e sai passando nas partes internas do carro que eu não teria como evitar de tocar, como o puxador da porta. Combinei com o motorista que inicialmente rodaríamos de janelas abertas mas, se ficasse muito quente. ligaríamos o ar condicionado, mas garantindo a entrada de ar externo.

Me foram distribuídos mandados de 4 bairros diferentes. Começamos as diligencias em Patamares, passamos pela Pituba, Ondina, terminando na Federação. Durante as diligencias tentei fielmente seguir os protocolos, mantendo a distância minima de um metro das pessoas abordadas, evitando tocar com as mãos em portões, preferindo o faze lo com o pé, e nos mandados que foram positivos, eu pedia para a parte segurar sua identidade esticando o braço em minha direção para eu anotar os dados. Antes de entregar a cópia do mandados e a caneta, eu oferecia o meu álcool em gel para que a parte higienizasse as suas mãos. Voltando para o carro, voltava a higienizar mãos e caneta.

Em um dos endereços, a parte não morava mais no local, tendo sido recebida no playground pela inquilina da vítima que aceitou prestar informações. Após prestar as informações solicitadas a informante disse que, naquele prédio, havia uma família onde todos haviam contraído o vírus Covid 19 e estavam cumprindo a quarentena em casa.

Não preciso nem dizer que sai do prédio em pânico e agradecendo a Deus o fato de, mesmo antes de saber deste "pequeno detalhe", eu ter tomado todas as precauções. Voltei para ocarro e sai aplicando álcool gel em tudo. No mandado, como não tinha como passar álcool gel, apliquei o álcool líquido a 70% que havia levado em embalagem com tampa spray. Durante todo o plantão eu suava muito e não era de calor, pois o ar condicionado estava ligado no máximo.

APÓS AS DILIGENCIAS

Terminadas as diligencias, antes de sair do carro oficial, fotografei todos os mandados cumpridos e converti em PDF, registrando, tanto as notas de recebimento pelas partes quanto minhas anotações, para que não precisar mais ter contato com eles na hora de registrar o retorno no sistema da Central. Me despedi, agradeci ao motorista e fui para ao meu carro.

Coloquei de pronto todos os mandados no porta malas, onde permanecerão por alguns dias, pois a continuidade do meu trabalho será feita no computador de minha casa, com as imagens salvas evitando assim a possibilidade de contaminar minha casa e, consecutivamente, minha família.

Após entrar no meu carro, antes de fechar a porta, passei álcool nas mãos na tentativa de evitar qualquer forma de contaminação do interiore meu carro. 

RETORNO AO LAR

Chegando em casa, entrei pela porta da cozinha e, na área de serviços, me despi, colocando toda a roupa e a pochete em um saco de lixo para que fosse lavada separadamente.

Todos os objetos que tinham dentro da pochete, inclusive o celular, foram higienizados com álcool 70 antes de voltarem a ser usados.

Após o banho, eu já mais tranquila, posso dizer que os dias que antecederam ao plantão foram muito mais estressantes que o dia de trabalho em si. O receio do novo, tanto em relação à matéria a ser trabalhada, quanto a esta pandemia gerada por um vírus que ninguém sabe ao certo todos os detalhes, e que tem se espalhado com tanta facilidade e matado tantos, me deixaram muito assustada, apreensiva, e muito medo mesmo. 

Com fé em Deus, com os cuidados por mim adotados, espero estar isenta de contaminação. Tenho a consciência tranquila por ter feito a minha parte, levando a justiça a quem precisa, dando a minha pequena parcela de contribuição social tanto em relação à prestação jurisdicional, quanto à prevenção à pandemia, além do que já faço diariamente quando evito de sair de casa sem necessidade.

A todos os (as) colegas que, como eu, em cumprimento ao seu dever, se expõe na rua para levar a justiça a quem não pode esperar, desejo toda sorte do mundo. Bem como, e principalmente, desejo sorte e sucesso aos médicos, enfermeiros, pesquisadores e todos da área de saúde que tem se dedicado a população no combate ao Corona Vírus.

Faço igual reverencia àqueles que se arriscam diariamente para termos comida na mesa, recolhem o lixo, mantem a segurança e limpeza em nossas residencias e cidades, os que garantem a manutenção da nossa estrutura e equipamentos domésticos, públicos e/ou hospitalares e tantos outros que são obrigados a, de coração partido, deixarem em casa suas famílias e saírem ás ruas para o cumprimento de deveres assumidos.

Sou grata e orgulhosa daqueles que, mesmo com dificuldade, tem se mantido em casa, cuidando da sua segurança e de sua família, reduzindo os riscos daqueles que não tem essa opção de ficar em casa. É importante que todos entendam a importância da contribuição de cada um, da maneira que lhe cabe, e ficar em casa é uma destas formas.

Segundo as informações que nos chegam diariamente, cada Cidade,Estado ou Pais está mais ou menos avançado no combate à Pandemia do COVID 19 em função das escolhas de protocolos adotados pelos seus gestores e pelo bom ou mau cumprimento das autoridades sanitárias e também pela postura da comunidade que segue ou nao, o distanciamento social, bons hábitos de higienização e prevenção. Por isso, parabenizo às autoridades que estão sabendo conduzir esta situação tão difícil e com muito sacrifício para toda a sociedade. 

Rogo a Deus que ilumine as ideias das nossas autoridades, e rezo para que decisões equivocadas ou tardias custem o mínimo de vidas possível.

Fernanda Prestes
Oficial de Justiça em Salvador BA

2 comentários:

  1. Difícil lidar com o Stress da Pandemia e também da diligência.

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  2. Situação difícil e caótica estamos passando. Sou Oficial de Justiça no TjPA na comarca de Redenção-PA. Estou nessa lida há 25 anos...nunca vi uma situação tão estressante, desgastante como essa. E na rua ver as pessoas como se nada estivesse acontecendo, colocando em risco a própria vida, a dos outros e da própria família. Temos que ter muita dedicação e confiança em Deus

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