terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

IA: A plataforma digital do Judiciário brasileiro e o Mandamus

Do TJRR ao STF, emprego da Inteligência Artificial no Direito se mostra essencial para o futuro da Justiça

Crédito: Pixabay

Orquestrando a transformação tecnológica no âmbito do sistema judicial, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou, sob a presidência do ministro Luiz Fux, a Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro – PDPJ-Br (Resolução CNJ 335/2020). Essa ferramenta institui, de forma pioneira, uma política pública para a governança e gestão de processo judicial eletrônico que aproxima todos os tribunais do país.

A PDPJ-Br tem por objetivo integrar e consolidar todos os sistemas eletrônicos do Judiciário brasileiro em um ambiente unificado, implantando o conceito de desenvolvimento comunitário, em que todos os tribunais contribuem com as melhores soluções tecnológicas para o aproveitamento comum. Trata-se de uma plataforma única para publicação e disponibilização de aplicações, microsserviços e modelos de inteligência artificial (IA), por meio de computação em nuvem.

Importante destacar que, a partir da instituição da PDPJ-Br, fica proibida a contratação de qualquer novo sistema, módulo ou funcionalidade privados, mesmo que de forma não onerosa, que cause dependência tecnológica do respectivo fornecedor ou que não permita o compartilhamento gratuito da solução na PDPJ-Br.

A paradigmática iniciativa do Conselho Nacional de Justiça busca garantir a eficiência operacional do Poder Judiciário, ensejando a excelência na gestão de custos operacionais, com a economicidade dos recursos por meio da racionalização na aquisição e utilização de todos os materiais, bens e serviços, além da melhor alocação dos recursos humanos necessários à prestação jurisdicional, principalmente na área de tecnologia da informação e comunicações (TIC).

Nesse sentido, a PDPJ-Br funcionará como modelo de convergência, sendo provida por um repositório (marketplace) de soluções que estarão disponíveis para uso por todos os sistemas de processo judicial eletrônico do Poder Judiciário nacional. Neste cenário, o PJe permanecerá como sistema de Processo Eletrônico prioritário do Conselho Nacional de Justiça, pois apresenta grande aderência à PDPJ-Br, em virtude de seu avançado estágio de desenvolvimento.

De fato, o Processo Judicial Eletrônico (PJe) foi desenvolvido para uniformizar e automatizar os trâmites processuais, permitindo ganhos significativos em termos de eficiência, efetividade e redução de custos. Não à toa, onze tribunais já alcançaram 100% de processos eletrônicos nos dois graus de jurisdição: TJAC, TJAL, TJAM, TJMS, TJSE, TJTO, STM, TRT11, TRT13, TRT7, TRT9.

Novo importante passo foi dado em 28 de janeiro de 2020, por intermédio do acordo de cooperação técnica entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) para a pioneira inclusão do módulo Mandamus.

O Sistema Mandamus consiste em uma solução desenvolvida pelo TJRR, com apoio técnico e científico da Universidade de Brasília (UnB), que faz uso de Inteligência Artificial (IA) para automatizar o procedimento de cumprimento dos mandados judiciais.

Este sistema maximiza a eficiência do Poder Judiciário, reduz drasticamente os custos financeiros da atividade judiciária, e, também, amplia a qualidade de vida no trabalho de servidores e de oficiais de justiça.

Além de eliminar tarefas mecânicas e repetitivas, o projeto gera sustentabilidade, na medida em que evita o consumo de milhões de folhas de papel A4 e diminui o consumo de combustível na realização de diligências, trazendo a nova fase da governança corporativa, focada no acrônimo ESG (environmental, social and governance), também para o Poder Judiciário.

A sistemática de cumprimento de mandados é composta por diversas etapas burocráticas, repetitivas e manuais, com baixa estratégia, e, por isso, com grandes chances de ocorrência de erros. Podemos apontar, pelo menos, cinco etapas do processo necessário para o cumprimento de mandados: i) confecção do mandado pela serventia judicial, ii) distribuição do mandado ao oficial de justiça, iii) cumprimento do mandado, iv) expedição da certidão e v) juntada do mandado nos autos do processo.

Primeiro, faz-se necessário que o servidor cartorário se debruce sobre a decisão judicial proferida, identificando a diligência a ser cumprida por oficial de justiça e, assim, confeccione a minuta demandado com as informações necessárias.

Após sua impressão, o mandado é encaminhado à chamada “Central de Mandados”, onde outro servidor é responsável por analisar para qual oficial de justiça o mandado deve ser distribuído, o que geralmente é avaliado com amparo em critérios de zoneamento relacionados ao local em que a diligência deve ser cumprida.

Por sua vez, os oficiais de justiça precisam se dirigir à Central de Mandados para recolhê-los, devidamente impressos, certificando seu recebimento, e, apenas então, passam a se dirigir aos endereços indicados para cumprir as determinações judiciais. Por fim, os oficiais lavram as respectivas certidões, relatando, de forma circunstanciada, a diligência, e estas, em seguida, são juntadas aos processos.

Com o uso do Mandamus, inteligência artificial passa a ser empregada para realizar a análise de todas decisões judiciais proferidas e identificar a necessidade de expedição de um mandado com as informações do processo. Superada esta etapa, há uma subsequente automática distribuição para o oficial de justiça que se encontrar mais próximo do endereço de cumprimento, o que é verificado com o uso de GPS. Ocorre, portanto, a informatização de todo o ciclo de cumprimento dos mandados com a sua automação da expedição, distribuição e controle.

Assim, os oficiais de justiça, que passarão a trabalhar com smartphones, receberão em seus aparelhos os mandados por intermédio de um app mobile, por ordem de cumprimento, e já com a indicação da melhor trajetória para realização das diligências. Uma vez alcançado o endereço indicado no GPS e localizada a pessoa, o oficial acessa o mandado e as peças processuais relacionadas pelo celular, lê seu inteiro teor e colhe a assinatura da pessoa na própria tela do celular. Em seguida, encaminha o teor eletrônico do mandado por e-mail ou por Whatsapp.

Não sendo possível o encaminhamento eletrônico do mandado, seja por hipossuficiência ou por falta de colaboração da pessoa em indicar seu contato, o mandado será impresso em uma boleta similar àquela usada nas máquinas de cartão de crédito, contendo as informações gerais do mandado, bem como um QR code e um link de acesso ao inteiro teor do processo.

Após efetivar a diligência, o oficial de justiça poderá, a partir de um fluxo de opções correspondentes ao tipo de mandado cumprido, gerar a certidão de modo automatizado, por meio de apenas alguns cliques no próprio celular. Caso seja necessário acrescentar alguma informação, bastará inserir o texto, digitando no próprio smartphone. Por fim, assinará eletronicamente a certidão, que é automaticamente juntada aos autos do processo, conferindo transparência, em tempo real, ao juiz e às partes quanto ao cumprimento do mandado.

Todo o procedimento passa, portanto, a ser realizado de modo eletrônico, desde o recebimento do mandado à sua devolução com a respectiva certidão. Alguns detalhes merecem ser destacados. Caso um oficial receba um mandado de citação e não localize a pessoa, em razão de ter constatado com o novo morador ou um vizinho que ela mudou de endereço, bastará indicar o novo local no sistema e o mandado será automaticamente alterado e distribuído para outro oficial que se encontre mais próximo do endereço indicado.

Em outro giro, o sistema também irá considerar, para a distribuição dos mandados, a quantidade de mandados já cumpridos pelos oficiais, a distância percorrida por eles e o tempo que permaneceram logados trabalhando, permitindo que os mandados sejam distribuídos de forma justa e equânime entre os oficiais.

Questão relevante diz respeito ao aumento de confiabilidade das informações, na medida em que estas são imediatamente registradas, o que evita que se percam em razão dos naturais efeitos do decurso temporal sobre a memória ou mesmo por força de uma anotação à caneta posteriormente mal compreendida. Ademais, a extração automática da localização do oficial no momento da certidão também confere segurança quanto ao efetivo comparecimento ao local de cumprimento da diligência.

No caso do TJRR, as tarefas supra descritas, quando realizadas na forma tradicional, correspondiam a praticamente 45% dos atos cartorários, conforme relatórios estatísticos. Com a automação do Mandamus, o tribunal precisou realizar um redimensionamento da sua força de trabalho, a fim de realocar mão de obra humana para funções roboticamente não delegáveis.

“O Estudo da Imagem do Poder Judiciário”, em pesquisa qualitativa com a população e os formadores de opinião, já havia evidenciado a expectativa de que a modernização e a inovação tecnológica poderiam contribuir para o funcionamento do Judiciário, melhorando o acesso, promovendo a agilidade e a simplificação dos serviços (76% acreditam que o uso da tecnologia facilita muito ou facilita o acesso à Justiça). Também no seio do próprio Poder Judiciário esse é o sentimento amplamente prevalente. Magistrados ouvidos na Pesquisa “Quem somos – A magistratura que queremos”, realizada pela AMB, endossaram as ideias de processo judicial eletrônico, julgamentos virtuais e uso de redes sociais para comunicação processual, bem como a aplicação da inteligência artificial na elaboração de relatórios e identificação de processos repetitivos.

Em total harmonia com estas preocupações, um dos 5 eixos da gestão do Ministro Luiz Fux no CNJ e no STF consiste no fortalecimento da Justiça 4.0 e na promoção do acesso à Justiça Digital, como forma de incremento da governança, da transparência e da eficiência do Poder Judiciário, com efetiva aproximação com o cidadão e redução de despesas.

De fato, diversos países do mundo estão focando sua atenção e centrando esforços nas possibilidades que as novas tecnologias trazem para seus Sistemas de Justiça, de modo “a tornar possível atingir uma justiça mais eficiente, acessível, efetiva e equitativa, inserindo-se na equação parâmetros do custo e tempo”[1].

Processos relativos a execuções fiscais, por exemplo, representam 39% do total de casos pendentes (4 em cada 10 processos) e 73% das execuções pendentes no Poder Judiciário, levando uma média de 11 anos para um desfecho. A Justiça Federal gasta R$ 4,3 mil por processo, sem contabilizarmos embargos e recursos aos tribunais, sendo que a mão de obra que faz parte de toda a tramitação processual representa R$ 1,8 mil.

Em prova de conceito de inteligência artificial realizada no TJRJ, o sistema de IA deu cabo de 6.619 processos em pouco mais de 3 dias, enquanto um servidor dedicado exclusivamente a esta atividade demoraria 2 anos e 5 meses para fazer o mesmo. A “máquina” foi 1.400% mais veloz que o homem, e a acurácia alcançou o patamar de 99,95%, enquanto o percentual de erro do humano é de 15%, não só economizando tempo e gastos como sendo capaz de ampliar a arrecadação, além de permitir que os juízes e servidores da Vara possam dedicar mais tempo aos processos de maior complexidade[2].

No mesmo diapasão, mencione-se outras iniciativas no âmbito dos Tribunais, como o robô Victor no STF, igualmente exitoso na classificação de processos em temas de Repercussão Geral, e os projetos Sinapses (TJRO), Elis (TJPE), Corpus 927 (ENFAM), Hórus, Amon e Toth (TJDTF).

O emprego da Inteligência Artificial no Direito se mostra essencial para o futuro da Justiça, porquanto “atividades rotineiras e repetitivas na administração do direito podem ser desenvolvidas em uma fração do tempo com grande nível de acurácia, permitindo a concentração do talento humano em áreas estratégicas”.

Por sua vez, o machine learning, ou aprendizado de máquina, corresponde à área da IA que permite que um sistema aprenda por meio de algoritmos a desenvolver uma tarefa, detectando padrões de forma automática e aprimorando sua performance com base na experiência derivada da análise de dados pretéritos.

O Mandamus, por exemplo, teve no seu desenvolvimento a utilização de diversas técnicas e tecnologias, como a Alocação Latente de Dirichlet (Latent Dirichlet Allocation – LDA), consistente em um modelo estatístico de processamento de linguagem natural, a Term Frequency-Inverse Document Frequency (tf–idf ou TFIDF), responsável por aferir a importância de informações obtidas decorrente da mineração de dados realizada a partir do uso de medições estatísticas, a Bag of Words (BoW), o modelo Named Entity Recognition – NER (Reconhecimento de Entidade Mencionada), entre outros.

Agora, por meio da Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro (PDPJ-Br), instituída pelo CNJ, o sistema Mandamus estará disponível para todos os demais tribunais, concretizando a implementação de um conceito comunitário, em que todos os tribunais, independentemente da esfera, podem contribuir com as melhores soluções tecnológicas para aproveitamento comum, e melhor gestão da jurisdição digital.

Corroborando esse sentimento, cumpre trazer à baila as palavras do desembargador Mozarildo Monteiro Cavalcanti, presidente do TJRR, durante a cerimônia que formalizou o acordo de cooperação técnica: “O Mandamus tem todo o potencial para se tornar uma ferramenta útil para todos os tribunais. E, da mesma forma que o TJRR dá sua contribuição hoje, também será beneficiado com contribuições dos outros tribunais, sob o comando do CNJ”.

Essa convergência de esforços não só contribui para a construção de uma identidade única do judiciário nacional, como também potencializa o aprimoramento da prestação jurisdicional, tornando-a mais efetiva e célere. Em última análise, promove e facilita o acesso à Justiça e ao Poder Judiciário.




[1] MALDONADO, Viviane Nóbrega. O uso da tecnologia em prol da justiça: aonde podemos chegar? In: MANDONADO, Viviane Nóbrega; FEIGELSON, Bruno (coord.). Advocacia 4.0. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 47.

[2] PORTO, Fabio Ribeiro. O impacto da utilização da Inteligência artificial no Executivo fiscal – Estudo de caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 17 – n. 1, p. 142-199, 1º sem. 2019.

VALTER SHUENQUENER DE ARAÚJO – Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Juiz federal. Ex-conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP.
ANDERSON DE PAIVA GABRIEL – Doutorando e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador visitante (Visiting Scholar) na Berkeley Law School (University of California-Berkeley). Juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (Gestão do ministro Luiz Fux, Biênio 2020-2022). Juiz de Direito do TJRJ. Anteriormente, atuou como delegado de polícia na PCERJ e PCSC. Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRJ, bem como especialização em Direito Público e Privado pelo ISMP, em Direito Constitucional pela UNESA e em Gestão em Segurança Pública pela UNISUL. Professor de Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e da Escola de Administração Judiciária (ESAJ). Foi membro do Comitê Gestor de Segurança da Informação (CGSI) do TJRJ, Integrante do Conselho Editorial da Revista da Escola Nacional de Magistratura (ENM) e do Conselho Editorial da Revista da EMERJ. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do Fórum Nacional de Juízes Criminais (FONAJUC). Premiado no I Concurso de Artigos Científicos do Centro de Pesquisas Judiciais (CPJ/AMB) – troféu “Prêmio Ministro Carlos Alberto Menezes Direito”. Membro honorário do Conselho da HSSA (Humanities e Social Sciences Association) da University of California-Berkeley.
ESDRAS SILVA PINTO – Mestrando em Direitos Humanos, Segurança Pública e Cidadania pela Universidade Estadual de Roraima. Possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (2011) e especialização em Poder Judiciário com ênfase em Direito Processual Civil (2013). Juiz de Direito do TJRR. Atualmente é Juiz Presidente do Comitê de Governança de Tecnologia da Informação e Comunicação e do Comitê de Inteligência Artificial do TJRR. Compõe o Conselho de Inovação do Laboratório de Inovação e Inteligência da AMB - AMBLab.

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