A chamada inteligência processual pode parecer um conceito moderno, mas a prática é tão antiga quanto o próprio Poder Judiciário. Desde o início da profissão, os oficiais de Justiça sempre realizaram atividades de localização de pessoas e bens para o cumprimento de ordens judiciais — mesmo que, na época, ninguém chamasse isso de "inteligência processual".
Este texto explica como essa função sempre existiu, como foi formalizada e quais os rumos para o futuro.
Uma prática histórica dos oficiais de Justiça
Antes da era digital, localizar endereços e bens era uma atividade de campo. Para cumprir um mandado, o oficial de Justiça muitas vezes precisava:
- Buscar informações com vizinhos e comerciantes;
- Consultar listas telefônicas;
- Pesquisar em bancos e órgãos públicos, como o Detran;
- Acompanhar processos judiciais em andamento.
Tudo era feito manualmente, apenas com o mandado em mãos. Não existia o conceito de "inteligência processual" — era simplesmente parte da diligência judicial.
A chegada da tecnologia e a necessidade de regulamentação
Com o surgimento de sistemas informatizados como BacenJud, Renajud e InfoJud, a pesquisa de bens e pessoas tornou-se mais técnica e abrangente, levando os tribunais a regulamentarem a atuação dos oficiais de Justiça nessas tarefas.
A Justiça do Trabalho foi pioneira: há mais de uma década, criou estruturas específicas para pesquisas patrimoniais. Um marco importante foi a publicação da Resolução CSJT nº 138/2014, que instituiu os Núcleos de Pesquisa Patrimonial (NPP) nos Tribunais Regionais do Trabalho.
No TRT da 2ª Região, o Ato GP/CR nº 05/2017 atribuiu aos oficiais de Justiça a execução de mandados virtuais, com acesso a sistemas como BacenJud, Arisp e InfoJud, entre vários outros.
Essas mudanças provocaram forte resistência entre os oficiais da época, liderados por entidades como a AOJUSTRA, que chegou a comparar o Ato 05/2017 a um "AI-5" trabalhista, tamanho o descontentamento.
Consolidação da inteligência processual
Diversos tribunais continuaram a consolidar a atividade. Entre os exemplos:
- TRT da 5ª Região: Provimento Conjunto GP/CR nº 13/2020, regulamentando a pesquisa patrimonial feita por oficiais de Justiça;
- TRT da 3ª Região: Resolução Conjunta nº 193/2021, criando a Central de Pesquisa Patrimonial (CePP);
- TJAL - Provimento nº 45, de 10 de novembro de 2016 (NIOJ).
Assim, o que antes era uma prática isolada tornou-se parte regulamentada das atribuições dos oficiais de Justiça.
O exemplo do NIOJ no Tribunal de Justiça de Alagoas
Outro exemplo importante de consolidação e aprimoramento da inteligência processual é o Núcleo de Inteligência dos Oficiais de Justiça (NIOJ), do Tribunal de Justiça de Alagoas.
O NIOJ é um projeto criado para aumentar a efetividade no cumprimento de mandados judiciais, funcionando com sucesso em Maceió (AL). Sua atuação tem demonstrado resultados muito positivos, especialmente na área criminal.
O funcionamento do NIOJ se dá em três etapas principais:
- Identificação de mandados negativos: o núcleo analisa mandados que não foram cumpridos com sucesso;
- Novas diligências: após a identificação, realiza diligências adicionais para tentar localizar pessoas e bens e cumprir as ordens;
- Aumento da efetividade: o trabalho resultou no aumento da efetividade do cumprimento de mandados, elevando a taxa de sucesso na área criminal de 50% para 84%.
O NIOJ foi instituído pelo Provimento nº 45, de 10 de novembro de 2016, e implementado oficialmente pela Portaria nº 946, de 12 de julho de 2019. Seu objetivo é otimizar o cumprimento de mandados judiciais, reduzindo o tempo e os custos envolvidos e aumentando a efetividade da prestação jurisdicional.
O impacto positivo do NIOJ demonstra como a atuação estratégica dos oficiais de Justiça, aliada à inteligência processual, pode transformar a execução das decisões judiciais.
Tentativas de formalizar a função em lei
O Projeto de Lei 4188/21 (Marco Legal das Garantias), que originou a Lei nº 14.711/23, chegou a prever a criação dos chamados "agentes de inteligência processual", reconhecendo formalmente a atividade dos oficiais de Justiça nesse campo.
Apesar da aprovação no Senado, a proposta foi rejeitada pela Câmara dos Deputados. Contudo, especialistas afirmam que não se tratava de um novo cargo, mas apenas do reconhecimento formal de uma atribuição histórica.
Tramitam ainda na Câmara dos Deputados os Projetos de Lei nº 9609/2018 e nº 4755/2020, que visam regulamentar, por meio de lei, a atividade de inteligência processual exercida pelos oficiais de Justiça.
Normas recentes fortalecem a atividade
Em 2024, dois novos atos reforçaram a importância da inteligência processual:
- Ato nº 15/2024 do CSJT: Incluiu expressamente entre as atribuições dos oficiais de Justiça a realização de pesquisas informatizadas de patrimônio e atividades de inteligência processual em todas as fases do processo;
- Resolução nº 600/2024 do CNJ: Determinou que todos os tribunais regulamentem a inteligência processual como função dos oficiais de Justiça, com acesso direto aos sistemas de busca.
Essas normas representam o reconhecimento formal de práticas que, na prática, já eram executadas há décadas.
Resistências e incertezas para o futuro
Embora a atividade esteja formalizada, ainda existem resistências, especialmente na Justiça do Trabalho. Parte dos oficiais de Justiça vê a ampliação das atribuições como uma sobrecarga de trabalho, sem a correspondente valorização funcional.
Além disso, há o receio de que novas tecnologias tornem obsoleta a atuação manual na pesquisa patrimonial. Programas inteligentes capazes de operar automaticamente sistemas como SisbaJud e Renajud poderiam, no futuro, reduzir a necessidade de intervenção humana.
Assim como o DVD, que chegou ao Brasil como uma revolução tecnológica e logo se tornou obsoleto, a atividade de inteligência processual poderá evoluir — ou mesmo perder relevância — conforme surgirem novas ferramentas.
Considerações finais
A inteligência processual não é uma novidade recente. Sempre fez parte das atribuições dos oficiais de Justiça, ainda que de maneira informal e sem regulamentação.
Hoje, formalizada e fortalecida pelas normas do CNJ e CSJT, e impulsionada por projetos como o NIOJ, a inteligência processual representa uma importante atividade de efetivação das decisões judiciais. Contudo, seu futuro depende da capacidade de adaptação dos oficiais e da realização de mudanças legislativas e constitucionais que consolidem o papel estratégico da categoria.
É importante destacar que a regulamentação da inteligência processual não cria novo cargo ou nova função no serviço público. Trata-se apenas da formalização de atribuições que já eram desempenhadas. Por isso, é incorreto se referir ao oficial de Justiça como "agente de inteligência processual"; o correto é falar em atividade de inteligência processual como atribuição própria do cargo já existente.
A inclusão do cargo de oficial de Justiça na Constituição Federal é uma das ações que pode garantir a estabilidade e o reconhecimento desse profissional tão essencial para a Justiça brasileira.
InfoJus Brasil: o portal dos Oficiais de Inteligência do Brasil
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