* Isabella Cristina Ribeiro
Pereira
A
Carta Magna de 1988 (artigo 5º, inciso XXXII) elevou a defesa do consumidor a
direito fundamental e a princípio da ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, com o objetivo de proporcionar a todos
uma existência digna, frente à onda de abusos que prejudicavam a população
consumerista naquele período.
E
isto porque se partiu do princípio de que o fornecedor possuía (e ainda possui)
condição de privilégio frente ao consumidor, e o Estado, por sua vez, tem como
função a garantia da igualdade nas relações jurídicas, outorgando ao consumidor
instrumentos a lhe permitir defender-se e litigar pelos seus direitos.
A
igualdade buscada neste caso não é a formal, mas
sim a igualdade substancial, fundamento sob o qual se deve tratar “os iguais de forma igual e os desiguais de
forma desigual”, promovendo-se, então, a justiça social.
Para
tanto, o legislador criou, por meio do Código de Defesa do Consumidor, diversos
mecanismos aptos a harmonizar as relações entre
fornecedor e destinatário final dos produtos e serviços, e dentre eles estão os
apontamentos dos conceitos de vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor.
Cabe-nos aqui demonstrar que,
embora sejam estes dois institutos próximos, inclusive servindo ambos como
embasamento à proteção do consumidor, e ainda que seja muito comum a utilização
de um pelo outro por juristas em geral, inclusive em julgados, eles em nada se
confundem.
Vejamos.
O Código de Defesa do Consumidor assim aponta
a vulnerabilidade do consumidor, verbis:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo
tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à
sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a
melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das
relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor
no mercado de consumo (...)
Nota-se que o diploma consumerista tem como ponto
inicial o reconhecimento de que a vulnerabilidade do consumidor está presente
em toda relação de consumo, sem exceção.
A consequência jurídica dessa presunção é a
determinação de deveres ao fornecedor, como o dever
de informação, de responder por danos causados pelo serviço ou produto, entre
outros. Além disso, é a existência desse pressuposto (vulnerabilidade)
que justifica a criação dos meios de proteção e defesa ao destinatário final de
produtos e serviços.
Não se trata aqui de presunção legal cabível
de prova ao contrário, mas sim de característica intrínseca a todo e qualquer consumidor.
Assim ensina a doutrina[i]:
"A vulnerabilidade do consumidor é
incindível do contexto das relações de consumo e independe de seu grau cultural
ou econômico, não admitindo prova em contrário, por não se tratar de mera
presunção legal. É, a vulnerabilidade, qualidade intrínseca, ingênita,
peculiar, imanente e a vulnerabilidade do consumidor independe de classe,
categoria, condições financeiras e é presumida, (...)quer
se trate de consumidor-pessoa jurídica ou consumidor- pessoa física”
Essa vulnerabilidade se divide,
segundo classificação de Cláudia Lima Marques[ii]
e que vem sendo largamente utilizada pela jurisprudência pátria, em quatro
espécies, a saber: (a) técnica
(ausência de conhecimentos específicos sobre o que adquire, podendo ser
enganado), (b) jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico
que o leve a erro na celebração de contratos), (c) fática (insuficiência
econômica, física e psicológica), e, a mais recente, (d) vulnerabilidade informacional (dados insuficientes, manipulados ou não
verdadeiros sobre o produto ou serviço).
Por outro lado, o artigo 6º do
diploma consumerista faz menção ao consumidor hipossuficiente. Ao contrário do
que se mostrou acima sobre a vulnerabilidade, a hipossuficiência do consumidor
não é presumida, mas sim pontual,
e desta forma, deve ser comprovada e analisada caso a caso. Tanto o é que o texto
legal faz uso da conjunção “quando”:
Art. 6º “São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII - a facilitação da defesa de
seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no
processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo
as regras ordinárias de experiências
(....)” (grifos nossos)
É considerado hipossuficiente somente
aquele que, por ausência de condições
em geral, tem menos chance de conseguir reunir as
provas que demonstrem a existência de seu direito no processo judicial. Assim
ensina Bruno Miragem[iii]:
“A determinação do que seja a
hipossuficiência do consumidor se dá in concreto, devendo o juiz identificar
neste conceito juridicamente indeterminado, em acordo com as regras de
experiência, a ausência de condições de defesa processual, por razões
econômicas, técnicas, ou mesmo em face de sua posição jurídica na relação sub
judice (é o consumidor que não teve acesso à cópia do contrato, por exemplo)”
Outrossim, importante pontuar que
a vulnerabilidade é princípio que importa ao direito material, sendo fonte
irradiadora de direitos e deveres, como já demonstrado anteriormente. A
hipossuficiência, por sua vez, traz efeitos de cunho processual, já que, se
constatada sua existência, implica na determinação da inversão do ônus da prova
pelo magistrado, a incumbir ao fornecedor a produção de prova negativa.
Pretende o legislador dar o poder
de produção da prova àquele que tem mais condições de fazê-lo, pela natureza de
sua atividade, detenção de dados e informações que não estão ao alcance do
consumidor, entre outros. É o caso, por exemplo, do recente julgado do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação nº 0030902-42.2009.8.26.0576,
Relator Edgard Rosa, Data de Julgamento: 01/03/2012, 36ª Câmara de Direito
Privado:
“(...) cabia à empresa apelante ter produzido prova
de que os valores cobrados são realmente devidos, ilidindo as alegações
formuladas na exordial quanto à falha em seu sistema operacional (...). Tal
prova seria mais facilmente produzida pela recorrente, que detém as informações
e documentos do serviço que presta, além da tecnologia necessária à aferição
correta do serviço utilizado (...).”
Logo após a entrada em vigor do Código
em questão, alguns doutrinadores costumavam sustentar que a condição financeira
inferior do indivíduo (consumidor) é que caracterizava sua hipossuficiência
perante o fornecedor[iv].
Contudo, esta interpretação não vem se mostrando satisfatória, cabendo ao conceito atual de
hipossuficiência abranger a dificuldade do consumidor em produzir provas de
suas alegações como um todo, não importando se este óbice parte de sua condição
intelectual, física, técnica, econômica, da natureza do serviço que foi
prestado ou do produto adquirido, se é o consumidor pessoa física ou jurídica,
entre outros. Estes são os ensinamentos de Rizzatto Nunes[v]:
“O reconhecimento da hipossuficiência do consumidor
para fins de inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de
proteção ao mais “pobre”. Ou, em outras palavras, não é por ser “pobre” que
deve ser beneficiado com a inversão do ônus da prova, até porque a questão da
produção da prova é processual, e a condição econômica do consumidor diz
respeito ao direito material.”
No
mesmo sentido, posiciona-se o C. Superior Tribunal de Justiça:
"DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DO
CONSUMIDOR. DANOS MATERIAIS E MORAIS PELO FATO DO PRODUTO. INVERSAO DO ÔNUS DA
PROVA. HIPOSSUFICIÊNCIA. AMPLA DEFESA. (...) A hipossuficiência a referida pela Lei 8.078/90 na parte em que trata
da possibilidade de inversão do ônus da prova está relacionada, precisamente,
com o exercício dessa atividade probatória, devendo ser compreendida como a
dificuldade, seja de ordem técnica seja de ordem econômica, para se demonstrar
em juízo a causa ou a extensão do dano. (...)(REsp 1.325.487/MT, Terceira
Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti , DJe de 14/9/2012, grifos nossos)
Por tudo, conclui-se que, embora
muitas vezes sejam os institutos da “vulnerabilidade”
e “hipossuficiência” tratados como
sinônimos e que estes se apresentem de fato ilusoriamente parecidos, em nada se
confundem, possuindo pontos de diferenciação cruciais e, principalmente,
consequências jurídicas distintas.
[i] ALVIM, Arruda, et al. Código do Consumidor
Comentado, 2ª ed., São Paulo: Ed. RT, 1995, p.44 e 45.
[ii] BESSA, Leonardo Roscoe, et al. Manual
de Direito do Consumidor, 5ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2013, p.98 e 99.
[iii]MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do
Consumidor, 4ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2013, p.623.
[iv] WATANABE Kazuo. Código brasileiro de
defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, 9ª ed., Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 813/814 e SAAD, Eduardo Gabriel et al.
Código de Defesa do Consumidor Comentado, 6ª ed., São Paulo: Ed. LTr, 2006,
p.220.
[v] NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor,
4ª Ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2009.
Dados sobre o Artigo:
Título:
Distinções entre
vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor.
Classificação: Tese
Data de realização: 25/07/2013
Dados sobre o autor:
Nome completo: Isabella Cristina Ribeiro
Pereira
Profissão: Advogada da Ozi, Venturini
& Advogados Associados
Número da ordem: 329.767
Cidade: São
Paulo
Endereço: Av. São Luiz, 50
Telefone: 3156-2611
E-mail: julia@oziventurini.com.br
Dados sobre o escritório:
Razão Social: Ozi, Venturini & Advogados
Associados
Endereço: Avenida São Luis, 50, 34° andar –
Republica
Telefone: (11) 3156-2611
E-mail: julia@oziventurini.com.br
Site: www.oziventurini.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: