sábado, 12 de julho de 2014

Triste realidade

Interessante artigo do oficial de Justiça Clévenis Maranhão Sarmento, do TJPB, que fala das dificuldades do cumprimento das atribuições do cargo de Oficial de Justiça e ao final apresente possíveis soluções. Vale a pena ler.
"Contudo, apontar falhas é muito fácil e não quero resumir minha indignação a isso. Sugestões para melhorar tenho muitas! De início, o cumprimento do que determina a Lei com o fornecimento de condições e treinamento, bem como exigência de resultado e fiscalização, já estariam de bom tamanho. A criação de uma Lei específica para reger o cargo seria um passo importante.
Fornecimento de viaturas no lugar de migalhas de indenização de transporte, trabalho em dupla, setorização dos mandados, formando equipes especializadas em problemas de família, criminais e capturas, execuções fiscais, etc., seriam formas de caminhar rumo à especialização e à otimização que trariam uma elevação muito importante na qualidade do serviço prestado pelo Judiciário e, consequentemente na confiança sentida pela população.
Isso é possível? Não vejo por que não. A única coisa que falta? Vontade."
Leia o artigo na íntegra:

Triste realidade

Por Clévenis Maranhão Sarmento
cmsoficial.sub@gmail.com

Como você acha que devem ser a formação e o treinamento de um profissional que tem entre suas missões funcionais realizar prisões, executar as mais diversas ordens judiciais como buscas e apreensões, penhoras, arrestos, penhoras, sequestros, etc.?

Um profissional que lidará diretamente com pessoas em extrema vulnerabilidade, outras de alta periculosidade, em situações as mais diversas que trazem ao seu cotidiano um risco constante e a necessidade de atuar como ouvinte e conselheiro, com tato e paciência, para contornar desentendimentos e evitar conflitos, bem como ter a firmeza de agir quando tais conflitos não puderem ser evitados.

Você deve estar pensado: bom, no mínimo, alguém que vá exercer uma função assim, após aprovação em concurso público, deve ter um curso de formação que abranja Direitos Constitucional, Civil/Penal, Processo Civil/Penal, etc. Psicologia, Defesa Pessoal, Armamento e Tiro e todas as áreas de conhecimento que farão a diferença na hora do exercício da função com qualidade e de forma a reduzir ao máximo os riscos sofridos para todos os envolvidos.

Além disso, é de extrema necessidade que periodicamente sejam submetidos a atualizações e avaliações, somados ao constante treinamento nas áreas de defesa pessoal e tiro, afinal, se não houver prática, os conhecimentos adquiridos no curso de formação se dissiparão no decorrer do tempo.

Se você pensou na resposta acima ou em alguma com conteúdo semelhante, eu concordo com você.

O profissional a que me refiro é o oficial de justiça e, conforme prevê a Lei (art. 143 do Código de Processo Civil), suas funções são as descritas acima, entre outras.

Dedução inevitável também a que diz que se o ente público responsável pela contratação e formação do oficial de justiça não o faz, ou o faz de forma medíocre, age com indescritível irresponsabilidade, falta de compromisso com seus servidores e principalmente, sem nenhuma preocupação com a qualidade do serviço que presta à sociedade.
Pois bem.
Vamos agora ao mundo real. Ao Brasil real. À Paraíba real. Ao TJPB real.

Eu sou oficial de justiça desde agosto de 2000. Fiz concurso em 1998 e, apesar de ter ficado dentro das vagas oferecidas após a prova de conhecimento, 39º colocado entre 62 vagas, só assumi o cargo quase dois anos depois por causa da prova de títulos que me levou até a 107ª posição.

Logo quando assumi o cargo, em agosto de 2000, na Comarca de Caaporã, então com 25 anos de idade, um monte de energia, vontade de trabalhar e nenhum treinamento nem experiência na área, tive uma rápida conversa com o juiz que trabalhava na comarca no período de férias da magistrada titular.

Na conversa, que deve ter durado algo entre 40 segundos e 1 minuto, o juiz me perguntou se eu havia recebido algum treinamento do TJPB, ao que prontamente respondi que não, nenhum treinamento.

Um suspiro de frustração mesclado com conformismo do magistrado antecedeu o conselho do magistrado: procure o oficial de justiça mais antigo e tente aprender com ele.

Foi o que fiz. Procurei o colega oficial de justiça mais antigo da comarca para seguir seus passos e aprender a função, já que o TJPB, de quem era tal obrigação, não o fez.

Encontrei Rildo, desde então um grande amigo, que era oficial de justiça desde abril do mesmo ano na jovem Comarca de Caaporã.

Isso mesmo, o oficial de justiça mais experiente na comarca tinha 4 meses de serviço no cargo.

Lembro-me de um mandado muito complicado que recebi poucos meses depois de assumir o cargo. Era uma reintegração de posse de uma propriedade rural de uma usina de cana-de-açúcar, que havia sido invadida pelo MST.

No momento do cumprimento do mandado estavam presentes dezenas de policiais militares, um gerente da usina, um senhor, hoje falecido, cuja atividade principal, diziam os boatos, era a de pistoleiro, além claro, uma multidão de invasores em seus barracos de lona, com bandeira do MST hasteada, batendo foices e enxadas, gritando palavras de ordem no acampamento rodeado pelos escombros das instalações da fazenda que foram destruídas por eles junto com a plantação que havia no local, não só de cana-de-açúcar, mas de víveres cultivados por moradores, que foram expulsos pelos invasores.

Tínhamos um ambiente em ebulição. Uma bomba relógio pronta para explodir a qualquer momento e, no comando do cumprimento do mandado eu, Oficial de Justiça Clévenis Maranhão Sarmento, com meus três ou quatro meses de experiência, sem nenhum treinamento, sem nenhum equipamento, sem absolutamente nada além de uma folha de papel mal impressa em uma matricial, tipo de impressora ainda em utilização no TJPB. Acuados pelo aparato da polícia, os sem-terra saíram e invadiram outro lugar.

Outro momento memorável foi quando tentei cumprir um mandado de prisão que recebera. A praxe, abençoada posteriormente próprio TJPB através da Res. 15/2002, artigo 16 salvo engado, era apenas a entrega de vias dos mandados de prisão nas Polícias Civil, Militar e em mais algumas instituições para que fosse o mandado cumprido. Na prática o que ocorria e ocorre ainda é só o arquivamento do mandado, que só servirá de acúmulo de papel.

Eu não me conformava, e não me conformo, com isso. Ora, o mandado era de prisão e eu, como oficial de justiça era quem tinha que cumpri-lo. Iniciei as investigações com todo o aparato e logística que dispunha, uma moto Honda, XL 125, ano 1989, comprada em um leilão da SUCAN por R$700,00 por um cidadão que me revendeu pelo mesmo valor.

A investigação me levou a um acampamento do MST, embrenhado em uma mata da região, provavelmente onde se instalaram após a saída da fazenda. Chegando lá, sozinho, melhor dizendo, eu, minha moto e a sorte, após identificar-me, comecei a fazer perguntas e fui logo em seguida abordado pelo líder do acampamento, a quem perguntei a respeito do cidadão que pretendia prender em cumprimento à ordem judicial. Todos me responderam que se chamavam José Severino Sem Terra, que não tinham documentos e que era melhor eu sair logo dali.

Nesse momento um choque de realidade me atingiu, percebi de fato a situação em que me encontrava. Completamente desprotegido, salvo por um canivete que carregava no bolso, literalmente abandonado pelo Tribunal que não me deu qualquer treinamento ou condição de trabalho, colocando minha vida em um risco altíssimo para tentar fazer o meu trabalho da maneira que achava correta.

Iniciava-se ali a frustração e o desestímulo contra os quais luto diariamente para tentar, dentro dos limites que a omissão do Tribunal impõe, fazer o meu trabalho da melhor forma possível. Acredito que os mesmos sentimentos atingem a maioria, senão a totalidade dos colegas que estão na rua trabalhando.

A realidade na qual são jogados os oficiais de justiça após a aprovação em concurso público denuncia uma omissão flagrante por parte do TJPB e que só não leva a um resultado mais grave para os integrantes da categoria porque a distância entre o que um oficial de justiça faz e o que ele deveria fazer de acordo com a Lei é abissal! Essa parece ser também a realidade da maioria dos TJ's Brasil afora.

Sem nenhum demérito aos valorosos carteiros, as atribuições destes e a dos oficiais de justiça não guardam semelhança alguma. A missão do carteiro se encerra quando entrega uma correspondência em um endereço. A missão do oficial de justiça é achar a parte ou o bem, é executar a ordem, não apenas entregar um mandado judicial, mas cumprir o mandado judicial. A difereça é gritante.

Apesar disso, o que ocorre de fato na triste realidade do cotidiando de trabalho do oficial de justiça é justamente o contrário, ao ponto de muitas vezes o oficial de justiça ser referido como carteiro do juiz, ou aquele moço do fórum que entrega papel. O pior, com a conivência da categoria que se esconde atrás da falta de condições de trabalho somada à omissão do TJPB, que uma palha não move para mudar essa realidade.

Chegamos a um ponto tão crítico que a maioria é contra o exercício da função de acordo com o que determina a Lei. Preferem o marasmo, incentivado pelo TJPB, de apenas entregar papel e não de executar a determinação judicial.

Não estou aqui incentivando que os oficiais de justiça vão à rua trabalhar como manda a Lei sem receber as condições necessárias para tanto. Ao contrário, com as condições que recebemos do TJPB, ou melhor, que não recebemos, a categoria faz muito mais do que seria justo esperar.

Porém, nesses 14 anos de serviço, não me recordo de qualquer manifestação da categoria que envolva cobrança de tais condições para possibilitar o exercício da função dentro de um mínimo parâmetro de qualidade. As manifestações giram sempre e apenas em torno de contrapartida financeira, seja salarial, seja indenizatória, seja gratificatória. É sempre dinheiro.

É desnecessário argumentar sobre a importância de um salário justo, contudo, o melhor argumento para receber um salário justo é a qualidade do serviço prestado.

É lamentável, desestimulante, frustrante.

Acaso algum oficial de justiça queira de fato cumprir o seu papel, esbarra inevitavelmente na completa falta de recursos, inclusive legais.

O que dizer de um cargo que, para ser exercido de acordo com a Lei, precisa desobedecer a Lei.
Não entendeu? Eu explico.

É dever do oficial de justiça, como dito acima, executar o cumprimento de determinações judiciais que, a exemplo do que ocorre com a polícia de forma geral, o colocam em grave situação de risco e a necessidade de utilização de arma de fogo para defesa é algo óbvio.

Contudo, para utilizar arma de fogo é necessário capacitação e treinamento contínuo e, como já sabemos, o TJPB, nem qualquer outro Tribunal até onde sei, nem de longe fornece tais recursos. Mas há quem utilize recursos próprios para preparar-se e possuir uma arma legalmente, porém, se quiser tê-la à mão para uma eventual necessidade de defesa, própria ou de outrem inclusive, já que é dever do oficial de justiça coadjuvar o juiz na manutenção da ordem, terá que desobedecer a Lei que diz que oficial de justiça não tem porte de arma.

Ou seja, ou se desobedece suas obrigações funcionais ou o famigerado Estatuto do Desarmamento, porque eu não concebo um cenário onde uma equipe de oficiais de justiça se reúna para executar um mandado de prisão por condenação criminal, por exemplo, munidos apenas de papéis e boa vontade. Não adianta dizer que o oficial de justiça pode chamar a força pública. O cidadão também pode e isso não tem evitado que seja assaltado e até morto pela bandidagem.

Vale a pena lembrar que o único país onde o oficial de justiça é proibido de se defender é o Brasil.

Note-se que o risco a que se submete o magistrado ao emitir a ordem judicial no conforto de seu gabinete, é bastante para que a legislação autorize que porte arma de fogo para defesa. Contudo, o profissional que tem a obrigação de trazer a ordem para o mundo real, transformando palavras em um papel em ação, não tem o mesmo direito. É revoltante! É inacreditavelmente absurdo!

É uma completa desorganização em toda a cadeia de trabalho que deságua em um serviço de qualidade medíocre, vergonhosa, facilmente atestada, ainda que boa parte da categoria, a um custo altíssimo, dê o melhor de si.

A dúvida que paira em minha cabeça é até que ponto chegaremos? O que será necessário ocorrer para que o Poder Judiciário passe a encarar o oficial de justiça com a importância que têm e não como um incômodo necessário?

Contudo, apontar falhas é muito fácil e não quero resumir minha indignação a isso. Sugestões para melhorar tenho muitas! De início, o cumprimento do que determina a Lei com o fornecimento de condições e treinamento, bem como exigência de resultado e fiscalização, já estariam de bom tamanho. A criação de uma Lei específica para reger o cargo seria um passo importante.

Fornecimento de viaturas no lugar de migalhas de indenização de transporte, trabalho em dupla, setorização dos mandados, formando equipes especializadas em problemas de família, criminais e capturas, execuções fiscais, etc., seriam formas de caminhar rumo à especialização e à otimização que trariam uma elevação muito importante na qualidade do serviço prestado pelo Judiciário e, consequentemente na confiança sentida pela população.

Isso é possível? Não vejo por que não. A única coisa que falta? Vontade.

Por Clévenis Maranhão Sarmento
cmsoficial.sub@gmail.com

Fonte: Oficiais de Justiça em Ação
(http://oficiaisemacao.blogspot.com.br/)

Oficiais em Ação

Oficiais em Ação é formado por um grupo de oficiais de justiça da Paraíba com o objetivo acender a discussão a respeito de temas da carreira de oficial de justiça no Brasil, buscando sempre o reconhecimento, a valorização e a qualidade no serviço prestado por essa categoria, indispensável ao bom funcionamento do Judiciário em todas as suas esferas.

4 comentários:

  1. Aqui no Espirito Santo passo pela mesma situação

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  2. na Bahia a mesma situação

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  3. Amigos, enquanto o PT estiver ocupando a presidência da república, nunca conseguiremos o porte de arma funcional.

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  4. PT e PSDB são contra o porte de arma. Ambos são a favor do "desarmamento" da população de bem. Temos já 20 anos de PSDB e PT. Estou cansado disso.

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