terça-feira, 31 de março de 2020

A Justiça que se espera nos tempos do medo

Por Marcos Ciabattari

Ninguém estava preparado para a pandemia que avança, ameaçadora e faminta, sobre a nossa sociedade. Nem os indivíduos, nem as instituições. Fomos todos surpreendidos por fatos que exigiram e continuam exigindo decisões audaciosas para problemas que são inéditos, ao menos para a nossa geração. 

O Tribunal de Justiça de São Paulo, do qual sou servidor, surpreendeu a todos com medidas rápidas e firmes, logo nos primeiros dias. Sem desespero e com o apoio de especialistas que puseram a ciência e o conhecimento a serviço do maior Tribunal do país, profissionais do Direito e jurisdicionados assistiram a uma sucessão de medidas que, em curto espaço de tempo, esvaziaram os prédios de todo o Judiciário Paulista. E mais: implementou-se em tempo recorde um sistema de trabalho remoto que permitiu, contra todas as limitações que o ineditismo da situação impunha, que a Justiça continuasse acessível! Talvez não em todas as possibilidades da existência, porque nem todos os limites são passíveis de serem ultrapassados, como a morte vem nos lembrando em números maiores a cada dia. Mas, com certeza, o suficiente para garantir a dignidade de cada cidadão, objetivo maior de sua existência. 

Caminhados os primeiros passos, no entanto, é preciso avançar e temos agora, à espera da solução, um problema que pode jogar fora todo o esforço do Tribunal Bandeirante. Implantado o trabalho remoto que, a cada dia, se aperfeiçoa mais sob a condução de uma Presidência que se comprometeu a fazer viável e produtivo um sistema antes incipiente (dadas as diferenças entre as arquiteturas dos sistemas presencial e remoto), teremos decisões finais e interlocutórias que repercutem no mundo externo. Decisões e sentenças que produzirão seus efeitos nas ruas da sociedade, no interior das casas, das comunidades sem saneamento básico, nos ambientes insalubres onde o Estado, sabemos todos, não consegue chegar o suficiente para garantir a saúde de ninguém. Com o chamado “home-office” em pleno funcionamento, um verdadeiro exército de Escreventes, Chefes, Diretores, Assistentes Jurídicos e magistrados movem uma infinidade de processos, mas todos, a um dado momento, precisarão produzir, no mundo externo, suas consequências. A vida exige, agora, a corajosa resposta: quais decisões serão cumpridas de imediato? Quais aguardarão que a morte não nos ronde acima do tolerável, para receberem cumprimento? 

Aqui, neste exato ponto, a coragem e a prudência têm um encontro marcado. O que fazer com os mandados expedidos a partir de então? O Comunicado CGJ 260/2020, de 30/3/2020, apresenta uma lista ampla e flexível de possibilidades de mandados que devem ser cumpridos. Inclusive a busca e apreensão de bens (ítem 4), mesmo quando do cumprimento não depende a vida de ninguém. Mesmo que CUSTE a vida de alguém! Até mesmo, veja-se, os que de fato não têm, reconhecidamente, urgência nenhuma (ítem 2)! Arrisca-se o extermínio de um servidor, no caso, o Oficial de Justiça, mesmo que seja apenas para garantir um direito meramente patrimonial. Parece surgir aqui o entendimento que a orfandade de uma família é um preço razoável para que receba andamento, por exemplo, um processo penal do qual nenhuma vida depende e pelo qual nenhuma liberdade é ameaçada. Depois do monumental esforço para proteger a vida e integridade de magistrados, servidores e cidadãos, como não cansamos de aplaudir, surge uma bifurcação no caminho. A se insistir nela, milhares de Oficiais de Justiça sairão às ruas, adentrando residências, invalidando o esforço de isolamento social de dezenas de milhares de famílias, agindo como vetores avançados de disseminação do patógeno mortal, cuja contenção justificou todos os passos anteriores. Respirando, inalando, ingerindo o vírus que desintegra as famílias do nosso povo para cumprir sua função. Há uma decisão a ser tomada: quais os mandados cujo cumprimento justifica esse sacrifício? 

Há, sabemos todos, decisões que exigem, clamam imediato cumprimento. Dentro do peito de cada homem e cada mulher que se dediquem à construção da Justiça há uma bússola que aponta, sempre, a justa medida das coisas. Há presos que merecem e aguardam pela liberdade. Doentes à espera de tratamento ou medicação. Há crianças que aguardam as mãos da Justiça para se livrarem dos abusos monstruosos que as torturam noite e dia. O cumprimento de mandados em casos como estes, durante a fase nevrálgica da pandemia que nos assola, vai colocar em risco a vida do servidor. Um risco que nem os infectologistas sabem, por ora, mensurar. Não conheço, contudo, um único Oficial de Justiça que se contraponha ao cumprimento destes mandados. Ouso dizer mais: eu e meus colegas, mesmo sabendo que a morte anda conosco a cada passo nestes dias, arriscamos a vida com um misto de pavor e alegria, porque entendemos que de nosso suor depende a sobrevivência, física ou emocional, dos jurisdicionados que pagam nossos salários. Dos irmãos e irmãs a quem Têmis espera, a cada instante, que alcancemos para que ela não seja varrida desta Terra. 

Não há respostas fáceis para questões complexas. Seria injusto exigir ou esperar que os acertos fossem uma constante imutável, em um momento no qual o planeta todo, sem exceção, está perplexo e confuso. Acredito firmemente que nos próximos dias a Corregedoria Geral da Justiça vai aperfeiçoar as normas que tratam do assunto, para garantir que só saiam às ruas os Oficiais de Justiça que carreguem um mandado cujo cumprimento seja realmente indispensável. Indispensável a ponto de valer o risco de deixar uma criança órfã, uma família em luto, um crachá desbotado jogado sobre um caixão que não será velado, porque os velórios, até eles, estão desaconselhados. 

Não há respostas fáceis para questões complexas. Mas essa é a função dos que exercem a liderança: mostrar que a dificuldade não será maior que competência em preservar a vida. Que cada passo dado no enfrentamento desta, que é a maior crise que já enfrentamos, não é apenas mais uma etapa de um processo burocrático que visa preservar o próprio sistema. 

É um grito corajoso que afirma que o crachá, ainda que desbotado, continuará no peito de cada servidor que colocou sua existência nas mãos de quem o lidera. 

São José dos Campos, 30 de março de 2020. 

Marcos Ciabattari 
Oficial de Justiça 
Tribunal de Justiça de São Paulo


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MARCOS GODOY CIABATTARI é Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo lotado na Seção Administrativa de Distribuição de Mandados - SADM, Comarca de São José dos Campos/SP.

* imagem ilustrativa InfoJus Brasil

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