segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Cotas em concurso público: da ação afirmativa ao privilégio

Por Fabrício Motta

Ganhou destaque no noticiário recente o apelo feito pela presidente da República aos parlamentares em favor da aprovação de PL (6.738/13) que reserva para os negros 20% das vagas em concursos públicos Federais. Igual repercussão mereceu o fato de a relatoria do PL ter atribuído ao polêmico deputado Marco Feliciano (PSC-SP), o mesmo que em 2011 afirmou, em sua conta do Twitter, que os africanos "descendem de ancestrais amaldiçoados por Noé". No entender das entidades defensoras da novidade, a medida consiste em desdobramento natural do regime de cotas já aplicado no acesso às universidades públicas.

As cotas têm sido utilizadas como instrumentos de efetivação de "ações afirmativas", assim entendidas as políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação vulnerável, sendo vítimas de estigma social. Há relativo consenso de que as ações afirmativas têm origem nos Estados Unidos, mais precisamente nos movimentos pelos direitos civis das minorias étnicas ocorridos na década de 60. Estas ações podem possuir objetivos diversos, sendo que no caso da população negra busca-se não somente a promoção de Justiça compensatória em razão do passado escravocrata como também a promoção da multiculturalidade e o fortalecimento da autoestima por meio da integração racial nos diversos meios sociais. Ainda que se possa discutir, com seriedade e cientificidade, as diferenças históricas entre a situação dos negros nos Estados Unidos e no Brasil, o debate costuma assumir contornos radicais e passionais que condenam, sem qualquer reflexão, opiniões diferentes da majoritária.

Há consenso na constatação de que o país é marcado por graves desigualdades sociais e que há necessidade urgente de corrigi-las, mas existem divergências ligadas à eleição da raça como fator prioritário da exclusão e da concessão de oportunidades diferenciadas. De qualquer forma, a lei Federal (12.711/12) que estabelece cotas nas universidades públicas foi bastante feliz ao considerar não somente a raça como também a condição socioeconômica como critério para acesso às cotas.

Contudo, o raciocínio utilizado para as cotas nas universidades – por meio das quais o Estado cumpre o seu dever de fornecer acesso à educação – não pode ser o mesmo com relação aos cargos públicos, acessíveis por meio de concurso. Com efeito, de acordo com a CF a educação é não só um meio para a qualificação para o trabalho e para o exercício da cidadania, como também um fim em si: a educação deve proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa e é essencial para a realização das liberdades, incluindo a liberdade de pensamento. Todos têm direito à educação, com o correspondente dever do Estado de fornecê-la, mas não se pode dizer que todos têm direito a um cargo público.

Cargos públicos existem para bem servir a população, e por meio do concurso são selecionados de forma impessoal os mais aptos para prestar o melhor serviço público possível. Cargo público, como regra, não se destina simplesmente à geração de renda ou promoção de emprego: para esses objetivos, plenamente justificáveis e importantes, existem políticas públicas e sociais específicas. Ao se comparar as duas situações (cotas nas universidades e cotas nos concursos), pode-se dizer inicialmente que a educação é ponto de partida, enquanto o concurso é ponto de chegada: se o ponto de partida é igualado de forma justa por meio do acesso à universidade pública, não parece haver sentido em criar caminho mais curto para a chegada. Com efeito, a medida é discriminatória por conter em sua gênese um pressuposto injustificável: os que possuem acesso à mesma educação superior não possuem as mesmas condições de disputar, de forma objetiva, certames que utilizam o mérito como critério seletivo. Na realidade, o contrário deve necessariamente ocorrer: espera-se que a integração racial nos diversos escalões do serviço público ocorra naturalmente em decorrência da implantação das cotas universitárias.

No tocante ao acesso aos cargos públicos, a pergunta que deve ser feita é se há alguma "dívida histórica" a ser resgatada por meio de ação afirmativa. A resposta só pode ser afirmativa: existe, sim, um grupo de pessoas que historicamente tem sido desfavorecido no acesso aos cargos públicos e que, por essa razão, necessita de medidas afirmativas inclusivas. Com efeito, em nosso país há um déficit secular de impessoalidade no acesso às funções públicas em razão de nossa formação e tradição patrimonialistas. Nossos historiadores são unânimes em afirmar que desde o descobrimento do Brasil, com diversas peculiaridades a depender do momento histórico, a indicação para os cargos públicos obedece a critérios subjetivos de compadrio, amizade e parentesco. Nos dias atuais, essa tradição lamentável resiste bravamente por meio da existência de centenas de milhares de cargos em comissão, em todas as esferas, livremente providos por meio de escolhas pessoais. Como se não bastasse, mesmo passados 25 anos de promulgação da Constituição, ainda existem instituições públicas que insistem em não realizar concurso, desobedecendo sem qualquer cerimônia a ordem jurídica. Nesse sentido, o grupo de pessoas que necessita de ação afirmativa é composto pelos cidadãos de todas as raças que não possuem padrinhos, parentes, amigos, religiões ou partidos políticos para apoiá-los. As pessoas que necessitam reforçar a sua autoestima são aquelas acostumadas a assistir, impotentes, a distribuição de cargos pautada por critérios não republicanos. Esse é o maior passivo a ser resgatado: o abandono de um sistema secular patriarcal e clientelista que enxerga os cargos como propriedades do governante para serem livremente distribuídos entre os mais próximos, independente de sua raça.

Antes de se falar em cotas, temos que discutir com seriedade e responsabilidade a utilização ilegítima do serviço público para gerar emprego para os amigos. Sob esse prisma, o concurso público, por meio do qual se possibilita uma seleção objetiva pautada exclusivamente no mérito pessoal, já é a ação afirmativa. Criar nova ação afirmativa que possua alcance superposto com outra, sem aguardar os efeitos da inicial, pode caracterizar desnecessário e injusto privilégio.
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* Fabrício Motta é professor de Direito Administrativo da UFG e procurador do MP.

Fonte: Consultor Jurídico 

3 comentários:


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