domingo, 1 de janeiro de 2012

A ação do Conselho Nacional de Justiça e o risco que encerra

Ovídio Rocha Barros Sandoval

Em artigo anterior procurei demonstrar o perigo da burocracia e a sua busca pelo Poder sem respeitar limites, como a atuação do Conselho Nacional de Justiça vem demonstrando.
Neste artigo tratarei do ato praticado por aquele órgão administrativo e burocrático que tanta celeuma e confusão criou na comunidade jurídica da Nação.
Trata-se de deliberação tomada pela senhora Ministra Corregedora Nacional ao admitir ter requisitado ao COAF a movimentação financeira de todos os magistrados brasileiros, servidores e funcionários da Justiça, dos seus cônjuges e filhos, configurando verdadeira devassa na vida de 216.000 (duzentos e dezesseis mil) pessoas. Tudo sendo feito por simples deliberação administrativa, sem qualquer autorização judicial ou pessoal.
Diante do elevado número de pessoas atingidas pela devassa – 216 mil , entre magistrados, funcionários, servidores, seus cônjuges e filhos – Sua Excelência colocou em xeque a própria dignidade e respeitabilidade do Poder Judiciário. Todos os Magistrados estão incluídos e não poucos e desgarrados juízes. A generalização é odiosa, até porque Sua Excelência também faz parte do Poder Judiciário.
A Constituição Federal (clique aqui), no inciso XII de seu art. 5º garante o direito fundamental do sigilo dos dados pessoais de qualquer cidadão. Nas hipóteses fixadas no texto constitucional, o sigilo está relacionado ao princípio da intimidade e da proteção à intimidade garantida constitucionalmente: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (art. 5º, X). 
Sugestivo neste aspecto, estudo empreendido pelo eminente SAULO RAMOS em que, após fazer remissão a dispositivos das Constituições portuguesa (de 1976) (clique aqui) e espanhola (de 1978), bem como à tradição de nosso Direito Constitucional e administrativo, expõe que o "direito de acesso às informações, embora assegurado a todos não é pleno ou ilimitado", pois encontra-se sujeito a restrições por ele apontadas e "a nota de sigilo, legalmente imposta, torna indevassáveis aqueles assentamentos e veda a divulgação de seu conteúdo, sob pena de responsabilidade penal, administrativa e civil do agente público que lhe der causa". 1
Portanto, o sigilo somente poderá ser rompido mediante autorização judicial que legitime as informações a serem prestadas.
A Constituição, ao tutelar os dados concernentes a uma determinada pessoa, visa proteger a "intimidade dos dados pessoais, que é o direito de determinar por si mesmo. quando em que medida se pode comunicar a terceiro fatos de sua vida reservada". 2
Bem por isso, a quebra do sigilo de dados "que são a expressão gráfica da personalidade" no feliz conceito do emérito professor CAIO TÁCITO, haverá de respeitar o disposto na lei n. 9.296 (clique aqui), de 24.7.1996, que regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal, uma vez que o parágrafo único do art. 1° da referida lei determina a sujeição ao seu império das "comunicações em sistemas de informática e telemática". Para tanto, a lei de regência exige: a) – que a interceptação só pode ser determinada por ordem de juiz; b) – é indispensável que a decisão seja fundamentada, sob pena de nulidade; c) – para o deferimento da medida restritiva do sigilo é indispensável haja indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal.
Diante da regulamentação legal existente, não se pode ter dúvida que a quebra de sigilo de dados pessoais somente pode ocorrer mediante o exercício do poder jurisdicional. Estamos diante de matéria reservada, exclusivamente, ao Poder Judiciário, a quem cabe dizer, na feliz frase de CANOTILHO, a primeira e a última palavra.
No entanto, foi trazida ao debate a seguinte questão: Pode a Corregedoria do CNJ – órgão administrativo – romper o sigilo constitucional de dados pessoais de 216 mil pessoas?
A resposta está presente em um "óbvio ululante" na conhecida expressão de Otto Lara Rezende: não pode e o ato praticado pela senhora Ministra Corregedora Nacional é nulo, "nasceu morto" e ninguém está obrigado a cumprir um ato inconstitucional. Aliás, o saudoso e querido professor VICENTE RÁO entende "que ninguém, seja órgão ou autoridade executiva, ou simplesmente administrativa, ou qualquer particular, é obrigado a cumprir uma lei inconstitucional." Com maior razão um ato inconstitucional.
Portanto, caso aceita a possibilidade de um órgão administrativo, qual seja o CNJ, de romper o sigilo constitucional de dados pessoais, qualquer outra autoridade ou órgão administrativo poderá quebrar o sigilo de qualquer pessoa, tornando letra morta a garantia constitucional e introduzindo a anomia onde impera uma liberdade de escolha sem escolhas que façam sentido.
Daí porque fiquei surpreso e estupefato ao ler matérias jornalísticas, editorais e opiniões de juristas ilustres abonando a ação da senhora Ministra Corregedora Nacional ao instituir devassa nos dados de 216 mil pessoas, esquecendo-se todos do que vai neste artigo e o perigo que encerra a todo cidadão brasileiro, caso aceita a hipótese de que um órgão administrativa tudo pode e ilimitado é o seu poder e, assim, dele pode abusar sem o direito a qualquer crítica.
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1 Parecer n. SR-55, de 28.3.1988.
2 OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL "CPI ao Pé da Letra", Ed. Millennium, Campinas, 2001, pgs. 132/133.
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*Ovídio Rocha Barros Sandoval é advogado do escritório Advocacia Rocha Barros Sandoval & Costa, Ronaldo Marzagão e Abrahão Issa Neto Advogados Associados.


Fonte: migalhas.com.br

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