Um oficial de Justiça se afeiçoa a seus notificados
por Karla Monteiro
Numa manhã ensolarada de 2004, a arquiteta Maria de Fátima Mello de
Souza foi buscar o filho na escola, como fazia todo dia. Em meio ao
alvoroço de mães e crianças, foi abordada por um homem baixinho que
carregava uma pasta de couro marrom. Era um oficial de Justiça.
Trazia-lhe uma notificação de pedido de divórcio. O marido tinha dito
que ela nunca era encontrada em casa e recomendou que o oficial fosse
até a escola – a mesma em que ela estudara quando criança e onde era
conhecida por todos. “Queria mesmo me constranger”, disse a arquiteta,
quando evocou a história quase dez anos depois. “Fiquei extremamente
nervosa.”
Aturdida,
Fátima pediu a uma amiga que levasse o filho para casa e sentou-se com
Marcelo Band, o oficial de Justiça. Foi só a primeira de muitas
conversas. “Ele ficou penalizado com a coisa toda, virou meu amigo e
passou a me orientar”, contou a arquiteta. “Meu filho hoje tem 17 anos e
o melhor amigo dele é o Marcelo.”
Com 1,52 metro, careca e a barriga saliente, Band não passa
despercebido. Usa óculos modernos de armação branca e tem 55 anos. Como
oficial de Justiça, tem a missão de entregar os mandados expedidos pela
Vara de Família. Não costumam ser alvissareiras as notícias que leva:
são pedidos de divórcio, de investigação de paternidade ou de interdição
de bens. Quatro de cada cinco casos, segundo sua estimativa, são
notificações ligadas à pensão alimentícia.
Band acha injusto que profissionais como ele sejam lembrados apenas como
mensageiros da desgraça. “Se um tio falecer e te deixar uma fazenda
com 5 mil cabeças de gado, é o oficial de Justiça que vai te dar a
notícia”, afirmou. “Somos o longa manus do juiz.” Também se
irrita com quem equipara seu ofício ao de um mero entregador de papel.
“Não somos carteiros”, refutou. “Temos uma formação. A grande maioria
das pessoas precisa de orientação.”
Band fala pelos cotovelos e emenda frases divagantes em tom professoral.
No bairro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde ele atua, os
porteiros lhe oferecem água e o dono do boteco libera o cafezinho. O
gosto pela prosa talvez explique o que ele próprio define como seu
“diferencial”: o dom de entrar na casa de alguém para entregar uma
intimação judicial e sair de lá como se fossem amigos de longa data.
Foi assim quando Band visitou a psicóloga Hilda Maria Pereira dos Santos
quatro anos atrás. Tinha ido notificá-la da data da audiência do seu
pedido de pensão alimentícia. Recém-separada, ela havia parado de
trabalhar para cuidar do filho com diabetes, então com
9 anos, e o ex-marido não dava um tostão. Quando a porta se abriu, o oficial de Justiça foi recebido por uma mulher prestes a ter um ataque histérico, gritando que não tinha feito nada. “Ele pediu para entrar, me explicou o que era aquele papel e me orientou”, disse Hilda. Ela conversou com Band e contou-lhe seu drama. “Dias depois ele me ligou com um contato com o qual eu poderia conseguir atendimento de graça para meu filho. Serei grata para sempre.”
arcelo Band cativa seus notificados porque não age apenas como oficial de Justiça. “Sou padre, psicólogo, conselheiro.” Num mundo marcado pela incomunicabilidade, a
disposição para ouvir o drama alheio basta para estabelecer a empatia.
“As pessoas estão muito individualistas, a única preocupação é não ser
assaltado”, disse.
Sentado numa sala com vista esplêndida da Baía de Guanabara, no prédio
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio, no Centro da cidade, Marcelo
olhou pela janela e disse: “Acontece que a gente vai à casa das pessoas
duas, três, cinco vezes. A primeira para citar, a segunda para intimar, e
por aí vai”, contou, explicando os desdobramentos de cada processo. “É
uma relação.”
Band se formou em direito, tentou a advocacia por cinco anos, foi
funcionário público até ser demitido no governo Collor e também teve uma
experiência malfadada no comércio. Assumiu o cargo de oficial de
Justiça em 1995, a princípio para trabalhar em Santa Teresa e Catumbi,
região central do Rio. Teve uma pistola apontada para a cabeça num morro
em que precisou subir a serviço e foi alvo de um processo
administrativo por não conseguir entregar um mandado numa região tomada
por um conflito armado.
Tudo mudou quando Band foi transferido para o Flamengo. Fez seu primeiro
compadre já no dia da estreia. Foi incumbido de fazer cumprir um
mandado de prisão de um guardador de carros credenciado pela prefeitura,
acusado de não pagar pensão alimentícia. O oficial de Justiça foi para o
local, acompanhado da polícia. Chegando lá, deu de cara com o homem que
guardava o seu próprio veículo todos os dias. “Como ele me jurou que
estava com tudo pago, dei um prazo e ele me trouxe os comprovantes de
depósito.” Band levou o caso para a Defensoria Pública e o mandado foi
revogado. “Quando nasceu a filha dele, fui convidado para ser padrinho.”
Band passa todos os dias de manhã na Central de Regulação, que concentra
os mandados emitidos para toda a cidade. Pega os que lhe cabe e, a
partir daí, tem vinte dias para entregá-los aos destinatários. Não tem
um horário a cumprir, mas precisa distribuir cerca de 120 mandados e
intimações por mês.
A caminho do elevador do Tribunal de Justiça, Band despediu-se com mais
um caso do seu anedotário. Certa vez, ele foi entregar uma negatória de
paternidade a uma mulher, e ela quis saber o que era aquilo. O oficial
de Justiça explicou que o pai estava alegando que o filho não era dele, e
que ela precisaria requerer um exame de DNA na Defensoria Pública.
Desesperada, ela emendou: “Mas e se ele não for o pai?” Ao que Band
respondeu: “Nesse caso, ninguém pode te ajudar, nem Deus.”
Revista Piauí - Estadão - Outubro/2013
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